Uma empresa classificada como fantasma pelo Ministério Público, uma firma que recebeu quase R$ 200 mil por um serviço realizado antes mesmo de ela existir e outra em nome de um laranja confesso têm ao menos uma coisa em comum: foram irrigadas com verbas da Prefeitura do Rio voltadas para o atendimento a pessoas com deficiência.
Ruben Berta | UOL, no Rio
Levantamento feito pelo UOL em notas fiscais que constam em um sistema da prefeitura sem acesso público mostra que essas firmas receberam R$ 3,1 milhões, de 2022 para cá, de ONGs contratadas pelo município.
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| Centro para Pessoa Com Deficiência do Mato Alto, da prefeitura do Rio | Ruben Berta/UOL |
A maior parte desse dinheiro foi repassado pelas entidades para a realização de eventos em CMRPDs (Centros Municipais de Referência para Pessoas com Deficiência).
Pedidos para a realização das comemorações partiram diretamente da secretária municipal da Pessoa com Deficiência, Helena Werneck, amiga do senador Romário (PL), que tem forte influência na pasta.
Em nota, a Prefeitura do Rio afirmou que fará nova fiscalização em todos os documentos levantados pela reportagem e que, "caso alguma irregularidade seja encontrada, adotará os procedimentos cabíveis".
A prefeitura acrescentou, contudo, que todos os trâmites em relação aos contratos foram seguidos. "A prestação de contas é aprovada pelo setor competente, acompanhada pela Controladoria Geral do Município e fiscalizada pelo Tribunal de Contas do Município".
Pagamento a empresa que não existia
Um dos casos que chamam a atenção é o da CBR Eventos. Em 2023, a empresa recebeu um pagamento de R$ 176 mil da ONG Con-tato pela realização de uma festa de fim de ano numa unidade da prefeitura em Jacarepaguá, o CMRPD Mato Alto.
A nota fiscal emitida pela empresa diz que o evento foi realizado no dia 8 de dezembro, com serviços como buffet, brindes, brinquedos e animadores.
Registros da Receita Federal e da Junta Comercial do Rio, contudo, mostram que a firma só foi aberta quatro dias depois do serviço pela qual foi paga: 12 de dezembro.
O UOL não localizou relatórios da ONG que tratem do serviço que teria sido realizado pela CBR Eventos.
Na página da Secretaria da Pessoa com Deficiência no Instagram, há um vídeo da época reunindo imagens de eventos em diversas unidades, que mostram decorações simples e a presença de pessoas vestidas de Papai Noel.
Entre dezembro de 2023 e março deste ano, a empresa recebeu R$ 2,1 milhões das ONGs Con-tato e Instituto Uevom (União Esportiva Vila Olímpica da Maré).
Foram ao todo 14 eventos, sendo 12 com custo acima de R$ 100 mil.
Um dos mais caros foi o evento de Natal do CMRPD Mato Alto, realizado em dezembro do ano passado: R$ 240 mil, pagos pelo Instituto Uevom.
No Instagram da Secretaria da Pessoa com Deficiência, há uma postagem com um vídeo do evento, que mostra a distribuição de salgadinhos, uma mesa com frutas e bolos, máquina de algodão doce, pula-pula e a chegada do Papai Noel.
A reportagem enviou a postagem para uma experiente produtora do Rio que avaliou que o custo de um evento como o que foi mostrado não chegaria nem a 10% do valor pago pela ONG.
A CBR Eventos pertence a Renan José de Araujo Ribeiro da Silva, funcionário comissionado da própria Prefeitura do Rio desde abril de 2023.
Seu salário mais recente foi de R$ 8.300, como assessor da Secretaria de Esportes.
A reportagem apurou que Renan — que também é dono de uma loja de motopeças no Complexo do Alemão — é próximo de Ronaldo de Souza Faria, irmão do senador Romário, que tentou se eleger vereador nas eleições passadas, sem sucesso.
No Instagram da loja, havia ao menos duas postagens marcando Ronaldo: uma com a foto dele e outra com a de Romário. As publicações foram apagadas.
A CBR Eventos foi procurada por email,mas não se manifestou. Renan foi procurado por WhatsApp, sem sucesso.
A Prefeitura do Rio afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não há irregularidade na contratação de Renan, "mas por entender que há conflito de interesses ele foi exonerado (na quarta,19, após questionamento do UOL)".
Romário foi procurado por meio de sua assessoria de imprensa, mas não comentou a relação com a Secretaria de Pessoa com Deficíência nem sobre a empresa contratada.
O UOL tentou contato com Ronaldo Faria, por rede social e por meio da assessoria de imprensa de Romário, mas não houve retorno.
Romário foi o principal apoiador da campanha a vereador do irmão em 2024, mas ele não conseguiu se eleger.
Dono de empresa está foragido
Outra empresa irrigada com verbas para eventos voltados para pessoas com deficiência foi a Umbelino Serviços Limitada.
Num período de apenas uma semana, em dezembro de 2022, a firma recebeu R$ 639 mil da ONG Con-tato para eventos e prestação de serviços de manutenção em CRMPDs.
A empresa, baixada na Receita Federal em agosto do ano passado, pertencia a Gilson Nascimento Umbelino, atualmente com 87 anos.
Ele tem mandado de prisão em aberto desde abril de 2023, num processo que tramita na Justiça do Distrito Federal, acusado de fazer parte de uma quadrilha que dava golpes em idosos.
O MP classificou Umbelino como "laranja" e sua empresa como "fantasma", utilizada basicamente para "ocultação/dissimulação da verdadeira natureza dos valores obtidos de forma ilícita" pela quadrilha.
O UOL não conseguiu contato com Umbelino. A ONG Con-tato foi procurada por email, mas não se manifestou.
Empresa de laranja
Este ano, novamente, uma empresa em nome de um laranja foi contemplada com verbas para eventos para pessoas com deficiência: a 4M Produções.
A firma foi aberta em 21 de maio e em 26 de junho já recebeu um pagamento de R$ 181 mil do Instituto Uevom para a realização de uma festa junina no CMRPD Mato Alto. Foi a nota fiscal número 1 da empresa.
Ao todo, foram quatro pagamentos, que somam R$ 439 mil, num intervalo de apenas um mês.
No mês passado, o UOL esteve na sede da firma, na zona norte, e não encontrou nenhum representante. O dono, Célio de Lima Miranda, foi localizado em casa pela reportagem.
"A empresa está no meu nome, mas quem trabalha com ela são meu irmão e meu primo. Eles é que falam. Eu trabalho no Hospital da Posse".
Questionado sobre quem seriam o irmão e o primo, ele não quis informar nem passar os contatos.
Célio já trabalhou em 2024 para a ONG Con-tato, num projeto do governo estadual.
O nome dele também consta na lista de funcionários contratados pela Fundação Ceperj — órgão central no escândalo das folhas secretas revelado pelo UOL —, tendo recebido R$ 20 mil de janeiro a julho de 2022.
Em nota, o Instituto Uevom afirmou que "no caso da CBR Eventos e 4M Produções, as contratações foram feitas com documentação fiscal e jurídica regular, seguindo os mesmos critérios aplicados aos demais fornecedores".
"O Uevom não contrata fornecedores diante de qualquer indício de irregularidade e,caso surja orientação dos órgãos competentes, adotamos as medidas cabíveis e revisamos a relação contratual. Do ponto de vista contratual, todos os serviços foram executados."
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