“Não consegue planejar uma ação complexa”: médica desmonta tese de 'surto' por remédios

Especialista relata experiência clínica e afirma que efeitos de remédios citados por Bolsonaro em audiência de custódia dificilmente explicam conduta como a atribuída ao ex-presidente


Por Glauco Faria | Revista Fórum

A médica psiquiatra Elisa Brietzke, pesquisadora e professora titular na Queen's University, no Canadá contestou a versão apresentada pela defesa de Jair Bolsonaro (PL) sobre um suposto surto causado por medicamentos que teria levado o ex-presidente a danificar a tornozeleira eletrônica.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é visto através da porta da sede da Polícia Federal, onde está preso, ao final da visita da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (fora do enquadramento) Créditos: SERGIO LIMA / AFP

Em publicação nas redes sociais, ela postou: "Se você toma sertralina e pregabalina, fique tranquilo: esses remédios são bastante seguros e não vão te fazer cometer nenhum crime". A referência é aos medicamentos listados pelo ex-presidente em sua audiência de custódia, que o teriam induzido a um estado de paranoia, fazendo com que violasse a tornozeleira eletrônica com um ferro de solda.

Segundo a médica, “o nome técnico de alucinações em estados alterados de consciência é Delirium”, quadro que ocorre quando remédios, como sedativos, deixam a pessoa “nem totalmente dormindo nem totalmente acordada”.

"Nesse estado, a pessoa fica desorientada, não sabe quem ela é, onde está e se é dia ou noite. Em geral, as alucinações são visuais e simples (ver manchas na parede)", explica. "Quando há alucinações em um estado de Delirium, a pessoa em geral, está tão desorganizada que não consegue planejar uma ação complexa, como lembrar de um treinamento, pegar uma solda, ligar na tomada, proteger a pele, etc."

Com experiência no atendimento a pacientes hospitalares, Brietzke destaca o que já presenciou nesse contexto. "Trabalho como psiquiatra em hospital geral e vejo pacientes com Delirium todos os dias. Estamos falando do idoso que fez uma cirurgia e começa a gritar 'chama a polícia' dentro do hospital ou da senhorinha com demência que insiste em dizer que a enfermeira roubou o dinheiro dela", aponta.

"Parte do treinamento de médicos psiquiatras e de peritos é para diferenciar esse tipo de quadro de simulação. Na psiquiatria forense, contam-se nos dedos de uma mão os casos em que uma medicação foi a responsável por uma pessoa cometer um crime", conclui.

'Organização cognitiva'

Ao jornal Folha de S. Paulo, o psiquiatra Rodrigo Fonseca Martins Leite, professor colaborador do Instituto de Psiquiatria da USP, pontua que a medicação combinada é segura e raramente poderia causar um quadro de alucinação como o descrito por Bolsonaro.

"Não sei exatamente qual foi a indicação para o Bolsonaro. É lógico que precisa ser periciado, não é uma coisa para se afirmar sem ver o paciente, mas é muito pouco provável que essa interação justifique um comportamento organizado como o que o ex-presidente apresentou, de pegar um soldador. Isso exige uma organização cognitiva muito grande para que o indivíduo faça essa operação. Coisa que não é compatível com um efeito de confusão mental que eventualmente poderia acontecer se a medicação estivesse em altíssima dose", diz ele.

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