Um dia para não ser esquecido: entenda a dinâmica que levou à mais letal operação policial do Rio

Foram pelo menos 64 mortos após intervenção para cumprimento de mandados de prisão contra integrantes do CV nos complexos da Penha e do Alemão


Por Rafael Soares | O Globo — Rio de Janeiro

A operação policial mais letal da história do Estado do Rio deixou, ontem, pelo menos 64 mortos — entre eles, dois policiais civis e dois PMs —após intervenção para cumprimento de mandados de prisão contra integrantes do Comando Vermelho (CV) nos complexos da Penha e do Alemão, na Zona Norte carioca.

Bloqueios. Barricada com vigas de aço e carro incendiado tenta evitar o avanço dos policiais na Vila Cruzeiro — Foto: Fabiano Rocha

O marco anterior, de 28 óbitos no Jacarezinho, em 2021, foi mais do que dobrado. Na ação de ontem, 81 pessoas acabaram presas, outro nove agentes saíram feridos e 93 fuzis foram apreendidos — mais do que os 75 de todo o mês passado.

Durante os confrontos, além da intensa troca de tiros, os criminosos chegaram a usar drones para despejar explosivos sobre as forças de segurança. Agentes e veículos blindados avançaram pelo terreno, afastando barricadas reforçadas por carros incendiados — diversas colunas de fumaça eram avistadas ao longe.

Em reação orquestrada, ônibus foram sequestrados para bloquear ruas em todas as regiões da cidade, da Avenida Ayrton Senna, na Barra da Tijuca, às ruas do Riachuelo, no Centro, Dias da Cruz, no Méier, e das Laranjeiras, no bairro de mesmo nome. Os transtornos se estenderam à Região Metropolitana, atingindo Caxias e São Gonçalo.

O medo antecipou a volta para casa: o comércio fechou cedo, enquanto campus e escolas suspenderam as aulas. Houve lotação no metrô e nas barcas, e muita gente à espera do ônibus acabou a pé: mais de 200 linhas foram afetadas pelo caos. Longe das ruas, o tiroteio foi verbal: em torno de responsabilidades pelo ápice da guerra no Rio.

Situações sem precedentes

Um dia inédito na história da segurança pública do Rio. Para um estado onde tiroteios, fechamentos de vias expressas, unidades de saúde e escolas e guerras entre facções já fazem parte do cotidiano da população, é difícil que acontecimentos na área tenham ar de ineditismo. No entanto, 28 de outubro de 2025 vai ficar marcado por um acúmulo de situações sem precedentes.

De um lado, a operação policial mais letal da história do estado; de outro, uma reação inédita do Comando Vermelho (CV), que confrontou a polícia durante mais de 12 horas, usou pela primeira vez drones para jogar granadas nos agentes e, por fim, fez bloqueios coordenados em diversas vias importantes da Região Metropolitana — atrapalhando a volta para casa de milhões de pessoas.

A ação nos complexos do Alemão e da Penha alcançou o topo do ranking de letalidade, superando outras duas operações também realizadas no governo Cláudio Castro (no Jacarezinho, em 2021, com 28 mortos; e no próprio Complexo da Penha, em 2022 com 23 vítimas).

Parte de uma série de iniciativas do governo para tentar impedir o avanço do CV, a Operação Contenção foi planejada para tentar tirar das ruas alguns dos protagonistas do movimento expansionista. A operação, inicialmente, tinha como objetivo o cumprimento de 51 mandados de prisão expedidos pela Justiça do Rio a partir de uma investigação de um ano da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE). Um dos alvos era Edgar Alves de Andrade, o Doca, principal liderança do CV fora dos presídios. O efetivo empregado, de 2.500 policiais, pretendia estabilizar o território para possibilitar a captura de alguns dos criminosos.

Incursão de risco

A expectativa de policiais que participaram da incursão era de que fosse mais uma operação de rotina, mesmo que com grau elevado de risco. Como a polícia já tinha uma investigação em andamento, havia pontos mapeados e um roteiro a ser seguido para entrada e saída da comunidade até, no máximo, as primeiras horas da tarde. A reação dos criminosos aliada às mortes dos policiais em confrontos — os dois policiais civis ainda pela manhã e uma dupla de PMs do Bope horas depois — acabaram motivando o avanço da polícia até áreas de mata onde os criminosos tentaram se esconder.

Por conta do risco e da baixa visibilidade com a aproximação do fim da tarde, outras operações foram encerradas naquela localidade. A decisão das equipes de prosseguir com os confrontos contou com a aprovação dos superiores. Até o fim da noite, Doca, no entanto, não havia sido encontrado.

O saldo operacional da ação não foi corriqueiro: a operação terminou com 81 presos e 93 fuzis apreendidos. Em comparação, este ano a polícia tirou das mãos de criminosos uma média de 65 armas longas por mês. A maior apreensão de fuzis do estado numa única ação segue sendo a realizada na casa de um amigo do ex-PM Ronnie Lessa, onde 117 fuzis foram encontrados em 2019. A diferença é que, naquele caso, os fuzis estavam desmontados e ainda seriam comercializados; ontem, foram retirados diretamente de territórios dominados pela facção.

O número de fuzis apreendidos, no entanto, é apenas uma fração do arsenal mantido pelo CV nos dois complexos de favelas apontados como seu “quartel general”. Em 2010, as mesmas comunidades foram ocupadas pelas forças de segurança numa ação que antecedeu a inauguração de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nos complexos. À época, José Beltrame, então secretário de Segurança, afirmou que a ocupação acabava com a “crença na invencibilidade” do Complexo do Alemão. Passados 15 anos, policiais que investigam a facção afirmam que o QG do CV nunca foi tão intransponível.

Para entender o que deu errado, é fundamental encarar o contexto atual de expansão da facção, tanto em âmbito nacional quanto no Rio. Após passar quase uma década assistindo ao crescimento da milícia no estado e a do Primeiro Comando da Capital (PCC) pelo país, o CV decidiu, há pelo menos três anos, recuperar o espaço perdido. A partir de alianças fechadas em presídios federais, o Comando assumiu a Rota do Solimões — corredor que escoa cocaína da Colômbia e do Peru, via Amazonas, até o Nordeste e, depois, para o Sudeste —, absorveu quadrilhas regionais com as quais se associou e espalhou seus tentáculos por 25 estados.

Expansão lucrativa

A expansão capitalizou a facção: novos parceiros de negócios por todo o país aumentaram a rede de fornecedores de drogas — os matutos — e de armas da facção e também possibilitaram que o CV, até então pouco expressivo no tráfico internacional de cocaína, ganhasse maior protagonismo nas remessas da droga para a Europa e para a África.

Atualmente, parte desses novos “parceiros de negócio” oriundos de pelo menos dez estados estão encastelados nos complexos da Penha e do Alemão e na Rocinha, de onde comandam à distância suas quadrilhas em seus redutos de origem. Ontem, três dos mortos eram criminosos da Bahia e do Espírito Santo.

No Rio, a consequência do enriquecimento da facção é o investimento na tomada de territórios: desde 2022, o Rio assiste ao maior movimento de expansão do CV no Rio desde a criação dos grupos paramilitares, no fim dos anos 1990. No período, mais de duas dezenas de favelas já foram invadidas pelos traficantes — algumas delas, como a Gardênia Azul, eram reduto da milícia há mais de 20 anos.

Hoje, praticamente todo corredor que circunda a Floresta da Tijuca, passando pela Tijuca, Lins, Praça Seca e a Grande Jacarepaguá, já é dominado pela facção, que foca agora seus esforços na retomada de Antares, em Santa Cruz. Até o momento, o estado foi incapaz de conter essa ofensiva, que tem nos complexos do Alemão e da Penha seu principal centro de articulação.

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