Não há República possível quando o sangue vale mais que o mérito
Miguel Gualano de Godoy | Jota
Com o placar de 6 a 1, o Supremo Tribunal Federal formou maioria para validar a possibilidade de nomeação de parentes próximos para cargos políticos, como ministros de Estado, secretários estaduais e municipais, no julgamento do Recurso Extraordinário 1.133.118 (Tema 1.000 da Repercussão Geral).
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| STF / Crédito: Luiz Silveira/STF |
A decisão, relatada pelo ministro Luiz Fux, define que tais nomeações não configurariam nepotismo, desde que observados critérios de idoneidade moral e qualificação técnica.
Trata-se, contudo, de uma guinada institucional grave, que rompe com a tradição republicana consagrada na Constituição de 1988, subverte os princípios fundantes do Estado Democrático de Direito e contradiz a própria história da Corte. O mesmo STF que, em 2008, firmou o entendimento de que a vedação ao nepotismo decorre diretamente dos princípios do art. 37, caput, agora cria uma exceção inaceitável, que fragiliza a moralidade administrativa e legitima o patrimonialismo sob novo rótulo.
O precedente republicano de 2008: republicanismo, impessoalidade e moralidade
No julgamento do Recurso Extraordinário 579.951/RN – Tema 66 da Repercussão Geral, o STF estabeleceu um marco civilizatório: a vedação ao nepotismo não depende de lei formal, pois decorre diretamente dos princípios da moralidade, impessoalidade e do próprio princípio republicano (arts. 1º e 37, caput, da Constituição).Naquele contexto, o Supremo compreendeu que a Constituição é suficiente para interditar práticas patrimonialistas, sendo ilícita a nomeação de parentes em cargos de confiança, chefia ou assessoramento. O voto condutor do ministro Ricardo Lewandowski ressaltou que, numa República, não há espaço para confundir o público com o privado e que cargos públicos não são benesses pessoais, mas instrumentos de realização do interesse coletivo.
A moralidade administrativa, nesse sentido, impõe aos agentes públicos padrões objetivos de conduta – honestidade, decoro, integridade, enquanto a impessoalidade exige que o poder público sirva a todos, e não a alguns privilegiados.
O precedente de 2008, Tema 66 da Repercussão Geral, não apenas deu densidade normativa ao princípio republicano, mas também redimiu a promessa constitucional de que o Estado brasileiro seria dirigido pela virtude cívica, e não por laços de sangue. A Súmula Vinculante nº 13, editada logo após o julgamento, consolidou essa leitura redentora[1]: nomear parentes é inconstitucional, independentemente de lei formal.
A exceção inaceitável: o argumento dos “cargos políticos”
Apesar desse sólido edifício teórico e normativo, o STF, já em 2008, abriu uma brecha: admitiu a nomeação de parentes para cargos de natureza política, como ministros e secretários, por entender que esses agentes funcionariam como “braços político-executivos” da autoridade nomeante.O Supremo voltou a esse ponto no julgamento de 2025, e o ministro Luiz Fux reafirmou a tese, agora com maioria: o nepotismo seria regra proibida para cargos administrativos, mas admitida para cargos políticos, desde que a nomeação não seja cruzada e o nomeado possua qualificação técnica e idoneidade.
A distinção, entretanto, não encontra amparo na Constituição. O princípio republicano, pressuposto de toda forma de poder legítimo, não se subordina à natureza do cargo, tampouco cede espaço à conveniência política. A moralidade e a impessoalidade não são normas de aplicação seletiva: obrigam o governante em todos os níveis e esferas, inclusive e especialmente quando se trata dos cargos mais elevados, nos quais a exemplaridade é dever redobrado.
A decisão do STF, ao afirmar que “a regra é a possibilidade, e a exceção, a impossibilidade” de nomear parentes, inverte a lógica constitucional. Em uma República, a regra é a impessoalidade; a exceção é o privilégio. E nenhuma exceção pode subsistir quando ela corrói o núcleo valorativo da Constituição.
A nomeação de parentes, ainda que para cargos de “natureza política”, contraria frontalmente a Constituição de 1988, que fundou o Estado brasileiro sobre o princípio republicano[2] (art. 1º) e a administração pública sobre os princípios da moralidade e impessoalidade (art. 37).
A existência de cargos de natureza política não põe abaixo as exigências republicanas. O fato de serem agentes de poder não autoriza que a escolha se converta em favor familiar. Um ministro ou secretário cuja principal credencial é o parentesco com o chefe do Executivo é, antes de tudo, símbolo de um Estado patrimonialista travestido de governo democrático.
A teoria republicana contemporânea, de autores como Philip Pettit[3], ensina que os instrumentos do Estado devem ser não manipuláveis, resistentes a usos arbitrários ou seccionais. Nomear parentes é precisamente o oposto disso: é manipular o aparelho estatal em favor de interesses privados, usurpar o espaço público e convertê-lo em patrimônio doméstico.
Nomear pessoas próximas, ligadas por laços de parentela, é afronta direta à Constituição. O fato de cargos políticos serem ocupados por agentes de poder não pode permitir que a escolha privilegie laços familiares. A existência de cargos de natureza política tampouco põe abaixo as exigências de obediência aos princípios da moralidade e da impessoalidade.
Consequências institucionais: o patrimonialismo reeditado
A decisão do STF, ainda pendente de proclamação final, corrói a credibilidade da própria Corte, ao desdizer o que antes proclamou como princípio fundante da República.Sob o pretexto de preservar a discricionariedade política, a maioria acabou por politizar a moralidade constitucional, relativizando o que deveria permanecer firme e imutável.
Ao abrir essa exceção, o Supremo reabilita práticas patrimonialistas, legitima o uso familiar do Estado e fragiliza o pacto republicano.
Como observou o ministro Flávio Dino, único voto dissidente até o momento, “o nepotismo é banido até no setor privado. Não conhecemos um banco em que o presidente é pai e os diretores são netos e sobrinhos”.
Votaram a favor desse patrimonialismo reeditado os ministros Luiz Fux, Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli.
Está vencido até agora apenas o ministro Flávio Dino. E faltam votar ainda os ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Edson Fachin.
Apesar da maioria formada e do voto vencido firme de Dino, o que parece restar do caso é a sinalização do que o Supremo parece ter esquecido: não há República possível quando o sangue vale mais que o mérito.
[1] BALKIN, Jack M. Constitutional Redemption: Political Faith in an Unjust World. Cambridge: Harvard University Press, 2011.
[2] COMPARATO, Fábio Konder. Redescobrindo o Espírito Republicano, In: Revista da AJURIS – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, v. 32, n. 100, dez. 2005, p. 99-117. Vide também: GODOY, Miguel Gualano de. Devolver a Constituição ao Povo: crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
[3] PETTIT, Philip. Republicanism: a Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University Press, 1997. p. 173.
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