Na carta, Trump já havia ameaçado com armas; hora de falar de crime militar

A declaração destrambelhada de Karoline Leavitt, porta-voz da Casa Branca, ajuda a definir Jair Bolsonaro e seus aliados. Mais: já passou da hora de falarmos também de crime militar.


Reinaldo Azevedo | UOL

Vamos ver. O militante de extrema direita Michael Shellenberger, que se disfarça de jornalista, indagou numa coletiva se os EUA pensavam em novas punições ao Brasil e em sanções contra países europeus que estariam cerceando a liberdade de expressão. E a doida respondeu:

A nossa bandeira jamais será azul e vermelha... | Imagem: Reprodução/Nova Cultura

"Não tenho hoje nenhuma ação adicional para antecipar a vocês, mas posso afirmar que essa [a liberdade de expressão] é uma prioridade para o governo, e o presidente não tem medo de usar o poder econômico e militar dos Estados Unidos da América para proteger a liberdade de expressão em todo o mundo".

Antes que você imagine que Mohammed bin Salman Al Saud, que governa de fato a Arábia Saudita, pode ter se preocupado, que fique claro: o governo Trump está ameaçando países e governos democráticos, não ditaduras e ditadores amigos, ainda que estes mandem picar um jornalista considerado inimigo, derretendo os pedaços em ácido, como aconteceu com o saudita Jamal Khashoggi no consulado do seu país na Turquia. Trump já disse que Bin Salman "é um amigo" e "faz um trabalho espetacular".

Será que os EUA realmente usariam força militar contra o Brasil para livrar a cara de Bolsonaro? Pois é... Lembro que a ameaça já estava na carta que Trump publicou nas redes sociais e que seria endereçada a Lula. Escrevi no dia 30 de julho, nesta coluna, o texto "Casa Branca não exclui nem ação militar contra o país; canalha daqui apoia".

E por que o fiz? Prestem atenção a este trecho daquele troço absurdo e desaforado:

"COLOCANDO A AMÉRICA EM PRIMEIRO LUGAR: Ao impor essas tarifas para lidar com as ações imprudentes do Governo do Brasil, o Presidente Trump está protegendo a segurança nacional, a política externa e a economia dos Estados Unidos de uma ameaça estrangeira. Em consonância com seu mandato eleitoral, o Presidente Trump também tomou outras medidas para alcançar a paz por meio da força e garantir que a política externa reflita os valores, a soberania e a segurança dos EUA."

Escrevi então:

"Assim, tem-se por inequívoco que Trump vê os EUA como um país agredido pelo Brasil. Estaria, assim, operando uma manobra defensiva, de autoproteção. E aí vem a ameaça: 'alcançar a paz por meio da força'. Ora, trata-se de um fundamento de sentido aberto: como Trump se coloca no papel de regular e definir o que é a agressão -- e a independência do Poder Judiciário e a punição aos golpistas são vistas por lá, de forma malandra, como práticas contrárias aos interesses americanos --, o simples exercício da soberania por aqui pode ser lido, então, como agressão continuada, o que implicaria o 'uso da força para atingir a paz' Qual é o ponto extremo de tal primado?"

Respondo a pergunta que eu mesmo fiz: o ponto extremo é o uso da força militar.

"Reinaldo, você considera isso possível?" Em se tratando de Trump, convém sempre trazer o absurdo para a equação. "Mas você considera isso provável?" Não. Teria de haver um motivo para um ato de guerra contra o Brasil, que, de resto, precisaria contar com a anuência do Congresso.

Mas é claro que estamos diante de uma declaração de extrema gravidade. Ainda que a tal Karoline Leavitt costume dizer coisas um tanto assombrosas, ela é quem é, e isso não pode, obviamente ser ignorado. A embaixada nos EUA no Brasil reproduziu um vídeo com a resposta completa da dita-cuja; na mensagem que o acompanha, excluiu a ameaça armada.

E AQUI DENTRO?

A questão, agora, é como os atores políticos no Brasil vão lidar com tal aberração. Em nota, escreveu o Itamaraty:

"O governo brasileiro condena o uso de sanções econômicas ou ameaças de uso da força contra a nossa democracia. O primeiro passo para proteger a liberdade de expressão é justamente defender a democracia e respeitar a vontade popular expressa nas urnas. É esse o dever dos três Poderes da República, que não se intimidarão por qualquer forma de atentado à nossa soberania. O governo brasileiro repudia a tentativa de forças antidemocráticas de instrumentalizar governos estrangeiros para coagir as instituições nacionais."

Gleisi Hoffmann, ministra das Relações Institucionais, também reagiu:

"A conspiração da família Bolsonaro contra o Brasil chegou ao cúmulo hoje, com a declaração da porta-voz de Donald Trump de que os EUA podem usar até força militar contra o nosso país. Não bastam as tarifas contra nossas exportações, as sanções ilegais contra ministros do governo, do STF e suas famílias, agora ameaçam invadir o Brasil para livrar Jair Bolsonaro da cadeia. Isso é totalmente inadmissível".

Uma guerra contra o Brasil não seria uma coisa trivial. É evidente que não teríamos como oferecer resistência — poucas nações na Terra poderiam arrostar com o gigante militar. O problema está no desastre econômico que isso implicaria. Improvável que aconteça, indo para o impossível. Mas esse não é o ponto.

PELA PRIMEIRA VEZ NA HISTÓRIA

É preciso que fique claro que, pela primeira vez na história, temos forças políticas que abertamente defendem a intervenção de um país estrangeiro no Brasil. Sim, a "Operação Brother Sam" estava prestes a ser desfechada em apoio aos golpistas de 1964, mas não foi necessária porque o "aparato militar" de resistência que João Goulart julgava ter se bandeou para o lado dos golpistas, e o presidente derrubado decidiu não oferecer resistência.

Os EUA financiavam entidades e políticos golpistas, mas creiam: era raro que se fizesse a defesa escancarada, arreganhada, da intervenção. No X, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), por exemplo, publicou a notícia da ameaça com dois olhinhos estalados, como a dizer: "Olhem aí o que pode acontecer de não fizerem a vontade de Bolsonaro e Trump".

Tenho cá as minhas dúvidas se esse rapaz não é uma espécie de Quinta Coluna de si mesmo infiltrado entre bolsonaristas, dada a frequência com que expõe o que eles têm de pior. A quem aproveita uma ameaça como essa? De que modo isso pode ser bom a essa fatia da militância e aos pré-candidatos conservadores?

Nesta quarta, os irmãos Bolsonaro vão ignorar a ameaça? E os que se colocam como postulantes a Presidência: Tarcísio de Freitas, Ratinho Jr., Ronaldo Caiado, e Michelle? E as lideranças do Centrão que articulam em favor da candidatura do governador de São Paulo? E o pastor Silas Malafaia, que andou enroscando com a bandeira dos EUA no ato de protesto? Não pode aquele símbolo, mas a ameaça militar é aceitável e, digamos, cristã?

LULA E CRIME MILITAR

Suponho que, num próximo evento público, o presidente Lula acabará se referindo à fala da maluca que porta a voz do maluco. E certamente haverá um desses isentos profissionais -- gente que é neutra na disputa entre a corda e o pescoço -- a dizer que o petista está antecipando a campanha eleitoral.

Já não se trata mais de ser favorável ou contrário às tarifas. Tenho de lembrar que a conspiração com um governo estrangeiro para submeter a soberania do Brasil é crime previsto no Artigo 359-I do Código Penal:

"Art. 359-I. Negociar com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o País ou invadi-lo:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.

E é crime previsto no Código Penal Militar, que pune também civis. E aí a pena é bem mais pesada. E, vejam que coincidência, trata-se do Artigo 142 do CPM:

"Art. 142. Tentar:

I - submeter o território nacional, ou parte dele, à soberania de país estrangeiro;
II - desmembrar, por meio de movimento armado ou tumultos planejados, o território nacional, desde que o fato atente contra a segurança externa do Brasil ou a sua soberania;
III - internacionalizar, por qualquer meio, região ou parte do território nacional:
Pena - reclusão, de quinze a trinta anos, para os cabeças; de dez a vinte anos, para os demais agentes."

Atenção, Ministério Público Militar! Hora de verificar as condutas. Também nesse caso, a tentativa já é crime consumado.

0/Post a Comment/Comments

Grato por sua colaboração.